LUANDA ONTEM ACORDOU SEM PÉ
Por: Maria João Teles Grilo
… O céu continua a ter olhos de sangue e uma fúria divina estilhaça em trovões. Tudo o que é sólido se empregnou de água e tudo o que é líquido engrossou um rio chamado Luanda. Das rachaduras se abriram brechas e por elas, em golfadas, se solta o sofrimento. O choro dos povos dá-se por baixo da água, o lamento das famílias enlutadas está amordaçado, milhares de desalojados boiando como boiam no rio chamado Luanda, objectos úteis sobreviventes.
A cidade desfaz-se sob o cortante silêncio das autoridades. Uma cultura subterrânea onde tanta coisa acontece e tanta coisa é silenciada. O nosso Pravda, Jornal de Angola, hoje com 32 páginas, refere no canto inferior direito da vigésima oitava página, o dilúvio e a desgraça que se abateu sobre a cidade. O presidente não enviou condolências às famílias enlutadas. Não falou ao país. Mas foi o primeiro presidente a endereçar condolências à rainha Elizabeth II, pela morte do príncipe consorte. A governadora da cidade seguiu-lhe os passos. Um pinto ensopado que perdeu o pio. Enquanto o desgoverno finge que não se passa nada, os deuses insistem em ajustar contas e as águas abocanham as entranhas desventradas do caos. Na gaiola dourada da Cidade Alta, nenhuma pinga atravessou uma telha para acordar do coma os seus ocupantes. Quando um inquérito silencioso, ao silencioso silêncio das autoridades acontecer, se acontecer, o diagnóstico será de que todas as artérias e veias e órgãos, estão entupidos de lama.