Por: Pe Jacinto Wacussanga
São mais de cinquenta pessoas famintas lá fora. A maior parte é constituída de crianças, e mais algumas velhinhas, sentadas no chão poeirento. Os primeiros começaram a chegar a partir das seis horas da manhã. Não são os únicos. Todos os dias vêm às dezenas acorrer à nossa porta e à mão caridosa de Santo António dos Gambos. Que pena, se eu fosse Santo como Santo António, bastava levantar os olhos ao céu, teria caído alimento suficiente. Entrei em angústia, minha língua ficou ressequida, minhas pernas doem. Desde às 6H00 que me lavei, passei por eles, fingi estar ao telefone, entrei com a cabeça baixa no meu quarto. Levei muito mais tempo a vestir-me, enquanto pensava numa saída.
Fiz algumas ligações, mas nada. A vida está duríssima.
Por estes dias, temos tirado da comida dos internos para dar um pouco aos famintos, mesmo sendo pouco, cada pessoa tem levado o equivalente a um quilograma. Mas, hoje, o resto de alimentos tiveram de o levar às áreas que nunca receberam nada, e assim esgotámos o stock. Não sei o que vou dar às minhas crianças internas, a partir de depois de amanhã.
Foi quando me veio uma ideia: não sou Santo António, das causas impossíveis, mas posso, como antílope acossado por felinos, fazer qualquer coisa. Sabia que podia fazer mais, só que não tinha a certeza do que podia ser. O importante é que estava quase lá… De repente, em minha mente se fez dias, a obscuridade foi arredada. Podia ter na sede uma cozinha comunitária, onde as pessoas poderiam ter ao menos uma refeição por dia. E, ao lado da nossa horta de casa, tal como fizeram as manas Jú e Lúcia, todos os que têm energias podiam ter um pequeno lote onde colocar sementes de qualquer coisa precoce.
Fiz algumas ligações, não há soluções imediatas, mas alguns amigos me deram ideias.
Foi quando me decidi definitivamente dar a cara. Saí, encontrei muitas crianças e algumas idosas. Estavam pessoas de quem sou praticamente irmão, sobrinho, tio. Estava lá uma das minhas comadres, sentada na pedra. Uma mulher linda e jovem, mas que está pálida, magra, de beleza só permanecem as ténues curvas do seu corpo esguio e magro. Saudei-a mas desviei logo o olhar.
Foi quando eu disse a todos que a nossa reserva de alimentos havia esgotado. Nada mais tinha para oferecer, infelizmente, pois durante estes dias todos, tivemos sempre alguma coisa. E que me custava abrir a minha boca para dizer que não temos mais nada. E não tínhamos. Mas que iria voltar ao quarto, iria dar um novo grito, quem sabe, apesar da situação apertada, haveria pessoas de boa vontade que nos iriam apoiar. Falei com a garganta apertada. Tive de conter minha emoção. Falava pausadamente. Acrescentei que estava a vir de Luanda onde tive encontros e, infelizmente, as promessas estão atrasadas.
Depois de ter falado, sai dai, de novo, de cabeça baixa, dirigi-me ao meu quarto onde estou até ao momento. Se tiver vontade de urinar, tenho ao menos o bacio. Espreitei pela janela, e dei-me conta que algumas pessoas foram, mas outras, sobretudo as velhas e as crianças, estão deitadas debaixo da sombra, a aguardar por milagre.
Tanto grito em Luanda, junto do ouvido dos inquilinos da Cidade Alta, e nada. Os Bispos acabem de reforçar o nosso grito para a Declaração do Estado de emergência, e espero que tenhamos ajuda nas próximas semanas. Mas e eu que preciso de ajuda já, não sei o que faço. Não consigo sair, porque não tenho coragem de encarar de novo estas crianças e dizer que “já disse, não tem comida para ti! Vai-te embora…!” Não tenho essa coragem. Sou fraco, pobre, depressivo, e às vezes, tenho estado a pensar nalguma coisa: se aqui onde estou, estivesse um Padre com ligações ao MPLA, talvez fosse diferente, porque os do MPLA nunca deixariam cair o seu amigo. Eu, desde os primeiros momentos do meu Seminário, decidi nunca servir partido algum, não me identificar com forças políticas, mas sim, com a força de Jesus Cristo. Não estou de maneira nenhuma a dizer que não sou amigo dos que estão no MPLA. Por favor, não é isso que quis dizer. São muitíssimos. O que quis dizer é que, prefiro tratar os assuntos na linha institucional, com os órgãos de Estados vocacionados para o efeito, apesar de que quanto ao que à fome diz respeito, termos imensas linhas de discordância com o actual Governo. E não mudo a minha linha de pensar, porque seria ir contra a minha própria consciência.
Ainda agora, um dos seminaristas veio dizer-me que uma velhinha, por causa do calor, entrou no quarto dos rapazes, para se deitar, nem que fosse no chão. Sorrateiramente, os seminaristas lhe deram uma caneca de fuba, sem que ninguém mais se apercebesse. Se não, a maioria iria gritar-me aos ouvidos a sua indignação.
Quem me dera que fosse santo, para que da minha mão ocorresse o milagre da multiplicação dos alimentos!?
Sei que muitos amigos e amigas têm ajudado a por alguma coisa na minha conta bancária. Tem sido bom. Não sei se posso voltar a incomodá-los, mas vou gritar!
E o que faço agora? Sem cozinha comunitária? Sem panelas? Sem alimentos?
BEM, JÁ SEI, VOU GANHAR CORAGEM, PEDIR BOLEIA, IR ATÉ À CHIBEMBA E CONSEGUIR UM POUCO DE FUBA E AÇÚCAR, FAZER UMA TCHUVILA AÇUCARADA PARA TODO O MUNDO METER ALGO QUENTE NO ESTÔMAGO!
E, LEVO O GRANDE CONSOLO DE A CEAST TER APELADO AO EXECUTIVO PARA DECRETAR O ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA!